Changeling : Os Perdidos – Resenha

Um RPG sobre as várias faces de um Conto de Fadas

Thiago Miani (Colaborador NWoD Brasil)

Changeling: Os Perdidos é um título do Chronicles of Darkness. O módulo básico foi lançado em 2007 pela White Wolf enquanto a Devir traduziu e lançou aqui no Brasil.

Pra quem nunca ouviu falar Changeling, vem com a gente que vamos falar sobre um dos jogos mais criativos da White Wolf, mas atenção faça o que fizer não olhe para trás nem saia do caminho.

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O Mundo Mais do que Real

Changelings são criaturas da mitologia do povo Anglo-Saxão. Acredita-se que ele foi criado para explicar duas doenças, a primeira seria a depressão pós-parto onde a mãe para de reconhecer que aquela criança era sua criança e a outra seria a “síndrome de capgras”, onde uma pessoa passa a acreditar que um conhecido, como um familiar ou cônjuge, foi substituido por um impostor idêntico.

A criatura que substituía esse sequestrado chamava-se de changeling, ou, trocado.

Enquanto nós procuramos soluções para essas doenças o mundo criava histórias ao redor delas, e é delas que queremos falar.

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A História

Histórias de pessoas levadas por fadas e criaturas da floresta não são assunto novo nas culturas ao redor do mundo. Muitas vezes surgem como avisos, superstições e ameaças inofensivas para que a molecada dê sossego na hora de dormir. Seja na forma do bicho papão, seja o lobo da floresta escura…

Em Changeling, as fadas estão por aí procurando a mais nova peça de mobília para seus castelos na feéria (também chamada arcádia), ou quem sabe um punhado de arbustos para seus jardins e, para conseguir isso eles mandam seus caçadores através da sebe – o caminho que separa os dois universos – até o nosso mundo recolher a matéria prima.

Você era uma pessoa comum, vivendo sua vida comum, estudando até tarde pra passar naquela matéria que detesta, vivendo de comida congelada e dividindo sua vida social entre o sofá, o computador e a cama. Então um dia eles levaram você.

O motivo das fadas levarem os humanos? Ninguém do livro básico sabe. Por que você? Temos muitas respostas pra isso. Para que se dar ao trabalho de te substituir? Porque é divertido!

O que une os changelings dentre tantas diferenças é o sentimento de terem sido modificados por algo tão fantástico e terrível quanto os reinos feéricos e sua dificuldade em se adaptar a uma vida humana que eles anseiam, mas não reconhecem completamente depois de voltarem para o mundo real.

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O Tempo e O Vento

Uma das primeiras coisas que os changelings percebem quando voltam é que o tempo em arcádia se comporta de modo completamente distinto do nosso mundo. Logo, 20 anos longe de casa no reino das fadas podem ter sido 5 minutos no churrasco de Natal na casa da sua vó, e vice-versa… Pra piorar, muitos fae deixam no seu lugar uma cópia feérica ou doppelganger, um duplo que age, fala e se parece com seu “eu humano”.

Você pode achar que isso te isenta da necessidade de retomar sua antiga vida, mas considere que as pessoas que você conhece podem acabar vendo você em dois lugares diferentes e que, acima de tudo, seu duplo possui um canal direto com seu captor e pode chamar os cachorros pra cima de você, literalmente, caso vocês se encontrem. Mesmo que você ache fantástico ter alguém vivendo sua vida, não é uma atitude muito sábia ignorar um duplo.

Pior ainda seria se ele morresse em sua ausência. Como convencer aqueles que choraram no seu túmulo, de que não era você, que a pessoa que eles abraçaram centenas de vezes e choraram centenas mais nunca foi real?

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Criação de Personagem

Depois de decidir como vai ser a história do seu personagem, como era a vida dele antes de ser levado, como foram os dias dele em arcádia e como ele acabou voltando, é hora de transformar isso tudo nas informações a serem preenchidas na sua ficha.

Feição, Fratria e Corte

Não importa o quanto queiram fugir de seu passado, as marcas que feriram os changelings simplesmente nunca ficam para trás. Ainda existem laços que os ligam a seus senhores, não importa o quanto desejem cortar essas ligações.

Os principais traços são suas Feições e suas sub-divisões, as Fratrias.

A Feição reflete o papel que os Fae atribuíram a você em Arcádia, podendo significar qualquer coisa, literalmente. Do calor de uma vela passando por um cão de caça até um bailarino virtuoso, os Fae não tem limites na hora de remodelar o corpo e o espírito dos cativos para satisfazer seu tédio e suas vontades.

Você pode escolher entre uma das seis Feições apresentadas no módulo básico: Trevosos, Belíssimos, Elementais, Ogros, Feras e Mirrados.

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Dentro de uma mesma Feição, como por exemplo, os Elementais, você tem changelings de naturezas distintas como os Almardentes, os Nevados ou os Florestirpes. O personagem recebe ainda uma bênção e uma maldição de sua Feição e uma bênção de Fratria. No caso dos Elementais, eles podem gastar parte do seu poder para aumentar sua resistência natural, porém eles têm mais dificuldade em situações sociais envolvendo humanos.

Além das Feições e Fratrias – divisões com base nas experiências e mudanças sofridas pelos Perdidos – existe ainda a divisão ideológica das Cortes, que se apresenta também como uma maneira de manter os Outros, ou os Fae, longe e, acima de tudo, permite que os perdidos mantenham algo de sua humanidade entre as relações de poder e identificacão por seus grupos sociais.

As Cortes fazem uso de pactos antigos feitos com as estações ou outros aspectos similares, sempre representando um caráter cíclico e  de continuidade, por exemplo: dia e noite, pontos cardeais, as quatro estações, etc. Isto é algo estranho aos captores de arcádia, cujos reinos permanecem imutáveis devido a soberania dos Fae.

 

As quatro cortes (da esq. pra dir.): Primavera, Verão, Outono e Inverno

 

No caso das cortes das estações, elas apresentam poderes ligados às emoções relacionadas a cada uma delas e seus cortesãos são abençoados com aspectos físicos de acordo com sua afinidade com o conceito da corte, representado na qualidade Manto, que pode ser adquirida na criação do personagem.

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A Lucidez, o Glamour e a Mascarilha

Os títulos do Chronicles of Darkness 1e possuem uma mecânica muito interessante de Moralidade que reflete a relação do personagem com o mundo e outras criaturas ao seu redor.

No caso de Changeling, a Lucidez representa o quanto seu personagem consegue discernir entre o mundo real e os reinos do Glamour alterados pelos Fae. Quanto maior a Lucidez (o valor inicial e médio é 7), mais controle o changeling tem de sua percepção e se torna capaz de perceber alterações mais sutis entre os mundos, uma Lucidez muito baixa (menor que 5), por outro lado, arrasta o changeling para um turbilhão de estímulos indistintos, representados pelas Perturbações e pelos redutores tanto mentais quanto sociais nas mais diversas situações.

A Mascarilha é a aura que permite aos Changelings manter sua aparência humana aos olhos dos outros mortais. Ela pode ser anulada caso o Changeling precise encantar um humano, normalmente para coletar Glamour – a energia que transformou os changelings no que eles são, sua essência, e que vem diretamente dos sonhos e dos sentimentos humanos. O Glamour pode ser roubado durante a ira de uma discussão, colhido de flores recentes num funeral ou absorvido de uma platéia de humanos embevecidos num espetáculo de dança.

Apesar de dominarem a manipulação do Glamour, os Fae Verdadeiros não conseguem gerá-lo por conta própria, talvez mais um dos motivos pelos quais eles roubem os mortais… Os changelings acabaram aprendendo diversos usos para a mágica do Glamour, modelando-o conforme necessário e tendo mais afinidade em colher o Glamour vindo de manifestações oníricas e emocionais ligadas a sua Corte. Um dos maiores usos para o Glamour na sociedade dos changelings é a realização de Contratos.

Os Contratos são poderes e habilidades usados para se defender, manipular e afetar outros changelings, os mortais ou a própria realidade. A ideia dos Contratos vem dos pactos das fadas com os elementos e eles são muito variados, podendo ser usados para se esconder, se tornar mais forte, influenciar os mortais, alterar a natureza a seu favor e por aí vai.

Seu personagem pode diminuir ou evitar o uso de Glamour em contratos através de gestos inspirados em superstições, como dar três pulos num pé só, jogar sal por cima do ombro ou beijar uma ferradura para ter sorte. Esse é no fim das contas, um jogo inspirado em lendas feéricas. O nome disso é Brecha, e (fora um único contrato) todos eles tem uma para ser usada e economizar o uso de Glamour.

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Vivendo no Fio da Navalha

Diferente de muitas das outras criaturas do Mundo das Trevas, os changelings não são criaturas que precisam roubar emoções para viver, nem mesmo precisam usá-la. Conseguir Glamour pode ser vantajoso para as pessoas e não um ato vil que o faça perder sua humanidade. O drama está no fato de que não alimentar o seu lado feérico é condená-lo à morte, e uma pessoa não pode viver sem metade de si mesmo.

Um changeling é uma criatura social, seja vivendo entre os humanos e conseguindo Glamour por pequenos acordos seja levando um pouco de fantasia e segurança aos mortais. Ao mesmo tempo, é importante socializar com outros changelings para se proteger de criaturas de poderes quase infinitos que não só já lhe sequestraram uma vez como nada diz que não o farão de novo, afastando-o de sua familia e amigos novamente.

Viver entre esses dois mundos, de Glamour e banalidade é vital para manter a sanidade de um changeling.

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Medos adultos, Monstros infantis

Talvez o ponto mais crítico de uma campanha d’os Perdidos é compreender que o medo que um changeling sente é real. O medo de ser esquecido, de sua vida passar sem você, de perceber que o mundo continua mesmo sem você nele. Encarar essa mortalidade é o primeiro primeiro passo. Você pode ser levado agora, no dia do aniversário de um ano de sua filha e só chegar para a formatura da faculdade dela. Descobrir que perdeu toda a vida da sua filha e ela nem mesmo vai saber que você não saiu de casa apenas para comprar cigarros e nunca mais deu noticias.

No outro lado desta ponte temos os Fee (com F maiúsculo), criaturas tão poderosas quanto infantis, capazes de fazer ou ser qualquer coisa, e não se submeterem a nada. Os poderes de um deus em uma criança mimada. Não é possível vencer. Não é possível pará-los. Não é possível nem mesmo salvar todos os outros, mas é preciso atrasá-los.

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A inocência novamente

O que faz um changeling? Alguém que teve sua alma arrancada, seu corpo violado, sua mente destroçada…

Ele busca.

A busca é a questão principal do changeling, seja buscar sua humanidade de volta, seja buscar a vingança, seja buscar apenas proteger outros para que o que aconteceu com eles não se repita. Eles buscam.

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Por Trás da Máscara

Se você não quer ler spoilers sobre a verdade de changeling pare de ler agora.

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As principais respostas de changeling

Os changelings são os novos Fee. Quando seu poder aumentar e sua moralidade baixar eles vão substituir seus protetores e fazer com outros o mesmo que eles sofreram. Cada changeling é uma peça do circulo de dor e abuso fee.

Cada corte é uma metáfora para as 5 fases do luto: a negação de que algo esteja errado (primavera), a fúria contra o que aconteceu (verão), a barganha para conseguir um pouco mais (Outono), a depressão de descobrir que nada vai mudar (Inverno).

As cortes dos outros livros também são assim, como as cortes do sol e da lua (nojo e vergonha) que são os sentimentos que podem acometer uma pessoa depois de sofrer abuso físico (sentir nojo do corpo que você não mais é dono ou vergonha de ter deixado isso acontecer).

Todos os fee são a ligação de seus protetores com a terra, e a única maneira definitiva de destruir essas ligações seria com o fim de todos os changelings, duplos e encantados de uma vez. Isso seria o fim do glamour e do encanto no Mundo das Trevas. Seria pior viver assim.

Todo fee foi criado por um fee, menos o primeiro. O primeiro fee foi alguém tão torturado que a própria realidade quebrou em cima dela. Cada pessoa depois disso é apenas alguém tentando salvá-la.

A coisa mais próxima que um fee verdadeiro tem de um amigo é um inimigo jurado.

As vidas dos changeling tendem acabar de maneira rápida e brutal ou em várias formas de tormento eterno. Mas, como qualquer história terrível e sombria, ela deixa ainda mais potencial para um final feliz e para brilhar a luz mais brilhante.

Quer outra maneira de olhar para ele? Você já passou por um inferno como nenhum dos outros habitantes do mundo das trevas pode entender mas foi forte o suficiente para escapar. E isso é muito, muito impressionante, principalmente considerando que isso era seu background antes mesmo do jogo começar.

Apesar de tudo dito nesta página. A verdade é que está fortemente implícito que a maioria dos captores nem percebem que seus escravos fugiram, muito menos se importam com isso. É parte do ponto do jogo que, enquanto coisas horríveis forem feitas para você, você ganhou algo mais do que o que você perdeu, mesmo se o que você perdeu foi alguma coisa que lhe era muito importante. Este é um dos dois jogos (o outro é Promethean: the Created), onde ganhar o seu final feliz é explicitamente uma opção.

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Resenha por: Thiago Miani (Colaborador NWoD Brasil)

11 comentários em “Changeling : Os Perdidos – Resenha

  1. Jéssica Lang disse:

    Ótimo resenha. Eu estava morrendo de vontade de comprar o livro, mas ainda tinha um pouco de dúvida sobre o jogo. Esse texto me ganhou!
    Uma dúvida. Na parte “As principais respostas de Changeling”, isso é uma interpretação de quem fez a resenha, ou tem no livro principal?

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    • Serial101 disse:

      Não no livro principal, a grande maioria dessas coisas é descrita com mais detalhes em Equinox Road, que, inclusive, conta com um sistema pra você jogar como Fee Verdadeiro, não por menos é de onde você pode tirar as poucas informações de como os Fee pensam.

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  2. Diego disse:

    Sou apaixonada pelo jogo e me surpreendi MUITO com os spoilers e tenho algumas perguntas, nos livros não da indícios de quem séria o primeiro changeling, a sebe ja existia antes do primeiro ou foi criada por ele, os hibgoblins seriam emanações emocionais,seria o primeiro changeling um mago?

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    • Serial101 disse:

      Não, quando se fala do primeiro fee (ele nunca foi trocado, ele foi transformado) foi citado como ideias avulsas. os hobgoblins são emanações da sebe, assim como os espinheiros ou os robôs. E não, não ha indicação que o primeiro fee tenha sido um mago, apenas que ele foi torturado o bastante para a realidade quebrar em cima dele, porem nada diz que o seu torturador não foi um mago.

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  3. Diego disse:

    Gostaria muito de ver uma resenha COM SPOILERS De lobisomem e mago como essa que fizeram de changeling !!!!!!!!

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    • Serial101 disse:

      Eu até posso escrever, os livros que tratam do cenário (fora o livro básico) tem varias ideias e explicações interessantes, por exemplo em lobisomem um dos suplementos cita que os wolf-blooded são filhos do pai-lobo ou da mãe-lua, não dos dois. Isso deixa claro que diversos humanos podem ser filhos de espíritos no mundo físico.
      Isso faz questionar o quanto é uma boa ideia você patrulhar a fronteira entre os mundos e impedir o contato do mundano com o espiritual.
      Outra interessante é que os puros acreditam que mãe-lua só se deitou com pai-lobo para criar o primogênito e drenar seu poder. Mãe-lua quer, especificamente, destruir o guardão dos mundos. Isso bate com o fato que um dos dons dela cria garras de prata o que é contrario a moralidade e só tem utilidade quando um lobisomem tenta matar outro.

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    • Opa, quanto ao de Mago eu faço um, assim que eu sossegar com meus trabalhos acadêmicos pro Mestr, digo, Mysterium.

      A forma de ver o mundo pros magos varia de acordo com as Arcana que eles possuem. Elas vão mostrar para o mago (quando ele usa sua Visão Mágica) os símbolos que compoem o mundo.

      O mago, assim como o Changeling, possui o que convencionou-se chamar “tier 4”, isto é, pode mudar seu template e seu nível de poder, tornando-se um Arquimago (coberto no livro Imperial Mysteries) e mexendo/alterando a realidade em si, linhas temporais alternativas e coisas do gênero.

      Agora, é muito fácil achar que o mago é um template sobrenatural que todos querem ser, achar que é algum “ideal”. O mago é um monstro pq quanto mais obcecado ele fica em descobrir as coisas, mais ele se distancia dos outros e aceita que “ovos sejam quebrados pra que se façam omeletes”. Ou seja, é muito fácil do desperto achar que ferir os outros é algo normal e aceitável como parte da sua busca por conhecimento e/ou poder.

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    • s3rv3r1n0 disse:

      Logo teremos a tradução de alguns materiais de Destituídos segunda edição.
      Quanto aos Perdidos, eles estão na agenda para um Darkcast próximo.

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  4. crislv disse:

    Legal a resenha Thiago! só fiquei com dúvidas no tópico “Por Trás da Mascara”. Eu li o livro a um tempo e não lembro onde tem essas informações, elas são interpretações suas sobre o cenário ou eles explicam isso em algum livro?

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  5. Camila disse:

    Adorei sua resenha!
    Eu tenho o livro há muito tempo, mas ainda não li ele todo, mas de repente pensei em narrar e quis ler um resumo só pra decidir se narro ou não, sua resenha me fez querer!

    E esses spoilers foram muito surpreendentes!

    Parabéns!

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